terça-feira, 6 de outubro de 2009

Toda história tem um começo...

Capítulo 1 -Pulgas e Sabonete

Soraya adentrou o banheiro ainda com a visão embaçada de sono. A luz da manhã entrou pela janela que, assim como todas na casa, eram grandes, e nessa repousava uma cortina amarelada. Tirou vários fios perdidos de cabelo marrom embaraçados do rosto e encarou sua imagem rosada no grande espelho acima do lavatório. Seus grandes olhos castanhos piscaram para ter uma melhor visão da garota a sua frente, passou a mão ao lado do olho tirando toda sujeira de sono que podia estar depositada ali, se ela não fizesse isso sua mãe o faria sem dó. Escovou os dentes e a boca com cheiro de acordado, e lavou o rosto. Não era uma menina muito limpa, gostava de lama, mas no primeiro domingo de cada mês, visitava sua avó.


Dona Ritinha era uma senhorinha pequena e magricela. Sua casa, apesar de estar cheia de gatos, não tinha uma sujeira aparente, móvel fora do lugar, ou poeira. Mas não era pela senhorinha, essa era desorganizada e com pouca memória. Era Vovô P que não deixava tempo livre pra governanta da grande casa cheirando a gato. Soraya não sabia realmente o nome do avô, nem suas primas mais velhas sabiam, sua mãe dizia que não entenderia, e Vovó Rita já se esquecera.


Apesar de não entender como poderia crescer tanto em pouco tempo (ou era o que sua avó dizia), gostava das visitas de domingo, a comida de sua Vó era ótima, e suas histórias sobre sua grande coleção de botões também.


No carro amarelo e quadrado, Soraya se acomodou no banco traseiro, sozinha. Seu pai arrumou os cachos negros do cabelo e sua mãe assentou no carro, parecendo uma estrela de cinema, sorrindo com a pele branca, os cabelos loiros e a boca vermelha. Encaixotada de vermelho com um laço amarelo, a menina sorriu de volta, exibindo seus dentes brancos e pequenos e esticando seu lábio rosado e também pequeno. Estavam prontos para a alegria de Vovó Rita e para os cuidados de Vovô P.



- Julia! Ricardo!... e, oh. Minha pequena Soraya.


Julia abraçou rapidamente a mãe, Ricardo sorriu para a sogra, e os dois adentraram a casa. A pequena fora aprisionada pelos braços fracos, magrelos e calorosos de Ritinha. Ela fungou aquele cheirinho de sabonete que a outra exalava e se preparou- três mil vezes mais feliz, para o discurso sobre seu crescimento sem fim nem pausa.


- Você deve ter crescido dez metros desde a última vez, pequena! – A voz de sua avó era rouca e doce... alegre e madura, cheia de histórias.


- Você que ‘ta encolhendo, Vó Rita.


Como sempre, suas frases inocentemente ousadas arrancavam gostosas risadas nas pessoas maiores. Quase teve as bochechas esmagadas e também entrou na casa. Dr. Kato, o gato de sua avó, passou pelas suas pernas compridas e a fez parar no hall, para extravasar sua esquisitice de conversar com seres não-inteligentes. Os adultos se reuniram na sala, falando tudo aquilo que Soraya, com apenas oito anos, já sabia de traz para frente; tempo, família, trabalho e... Soraya. Ou seria: Soraya, trabalho, família e tempo?


- Vamos brincar na salinha de Vovó Rita, vamos Dr. Kato? – Esmagou o gato comprido e amarelo no seu colo, e saiu pelo comprido corredor. Para chegar bem no final teve que reajustar o gato nos braços, que já miava- ou de felicidade ou de desconforto, não posso conversar com eles como Soraya para saber.



Parados na porta da sala, Dra. Soraya e menino Kato sentiram aquela coisa que sempre sentiam ao parar ali, e já previam o que iriam sentir ao entrar. Pularam pulinhos pequenos de felicidade adiantada... ou pelo menos Soraya pulou. Gato Kato pulou. Mas para o chão, e olhou com os olhos amarelos esbugalhados para a maçaneta dourada. Podia ser coisa de gato, mas ele via uma luz sair dali de dentro.



A Menina, atrevida como é, esticou a mão, e pausadamente foi curtindo aquilo. Já podia ver as cores, os brilhos e o cheirinho daqueles botões em frascos de vidros espalhados por um quarto realmente bagunçado. Mordeu os lábios e...



- Psiu! Não!


Como não? Claro que ela queria... já ia se indagar sobre uma possível dupla personalidade quando... girou a cabeça, com os olhos com o dobro do tamanho. Flagrada.


- Tira essa mão daí, Menina Roy. – Miranda, a governanta com sotaque mexicano ordenou.


Soraya Roy olhou para seu braço ainda esticado, alguns centímetros da maçaneta, e o puxou de volta. Endireitou-se e procurou abrigo com Dr. Kato, mas aparentemente ele também tinha medo da Dona Miranda. Olhando de baixo, seus seios pareciam dez vezes maiores, mas sua cara carrancuda parecia mais amena. O que sempre a fazia, quando era erguida do chão e conseguia a olhar de cima, desconfiar de um humor duplo perverso da governanta, já que quando vista olho a olho ela era horrenda.


- Já não me basta ter que tentar manter sua avó longe da sua própria bagunça, ela acaba se perdendo lá dentro. Imagina você... – A grande Miranda resmungava, caminhando em direção a paralisada Soraya. – Deve fazer o dobro da bagunça e se perder mais facilmente do que uma barata tonta. Já viu a quantidade de botões e prateleiras, papeis e “registros”?


A pequena sentiu seu pé despedindo-se do chão e acomodou seu corpo comprido e magrelo nas dobras da governanta.


- Dona Miranda, eu não sou mais tão criança para você ficar me pegando no colo. – Ela pronunciou com o tom mais adulto que encontrou.


- É uma questão de segurança, se eu te soltar, você pode fugir... minhas costas preferem um peso leve por um minuto do que uma corrida por lugares que você pode passar e eu não.


Tudo bem, ela concordava com a lógica, não gostava de ser carregada como um bebê... Mas concordava e aceitava. Fora levada para a sala, onde foi recebida com um sorriso sapeca de sua avó, que esperava ansiosa para ver o que a neta tinha quebrado. Amava seu Velho, e era muito submissa para sair quebrando as coisas, mas gostava de ver coisas quebradas... Achava que ainda era uma criança presa em um corpo que continuara envelhecer.


- Agora você está livre.


Miranda depositou o pacote vermelho com um laço amarelo no chão. O pacote olhou timidamente os pacotes maiores da sala, esperava que eles perguntassem se ela havia destruído alguma coisa de Vovô P, mas sua cor de decepção já lhes informava que apenas fora pega no flagra.

- Vamos esquisitinha... vou te contar sobre um botão diferente hoje.

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